Músicos também são escritores bastante peculiares, não apenas os letristas como também os compositores, já que letra e música se unem para dar vida a o que algumas pessoas podem considerar um tipo diferente e interessante de gênero literário. Quantas vezes a musica já serviu para substituir a leitura, e vice-versa?
Me animei muito desde que descobri que existem sim, evidências de que a musica pode muito bem ser vista como um instrumento contador de historias sem que muita gente perceba isso, ao contrario do que acontece nos musicais da Broadway, por exemplo: chamam-se álbuns conceituais.
Caso não saiba, álbuns conceituais são álbuns de artistas ou bandas em que todas as faixas contribuem entre si para retratar um único tema, geralmente contando uma história criada e desenvolvida pelos artistas que fizeram o álbum e que ocasionalmente exprimem críticas e reflexões sobre temas sociais, políticos, religiosos e econômicos diversos. Ou seja, ao colocar o álbum para tocar, muitos irão apenas curtir o som da musica como fariam com qualquer outro CD, mas se prestarem um pouco mais de atenção nas letras e instrumentos, verão que a medida que cada faixa vai passando, uma única historia está sendo contada/construída girando em torno de um tema específico. Uma historia que pode vir com tudo que tem direito: personagens, clímax, desfecho, etc. Alguns álbuns conceituais são mais explícitos do que outros, mas todos tornam-se únicos e geralmente são aclamados pela crítica e pelo público, e seu sucesso perpetua por gerações.
Resolvi fazer uma lista com exemplos e análises de alguns dos alguns conceituais que escuto, eu diria que todos bem conhecidos, para explorar melhor esse fato. Clicar aí embaixo pra ver o Top dos 10 melhores!
10) “Mylo Xyloto” – Coldplay (2011) Fã obcecado da banda como eu sou, devo admitir que esse não é nem de longe a “obra prima” deles, mas com certeza é um álbum muito divertido e interessante de se escutar. Juro que se o Chris, vocalista da banda, não tivesse dito numa entrevista que se tratava de um álbum conceitual, eu não teria percebido tão cedo, tamanha é a vibe que te prende ao ouvir as musicas. Comecei a suspeitar quando vi que a letra de “Paradise” se encaixava com a de “Charlie Brown” e que essa ultima (por sinal a melhor do álbum) não fazia muito sentido sozinha, cheia de metáforas e referências escondidas. Pois bem, essa é a arte do álbum – te fazer montar lentamente a historia ao encaixar uma musica na outra: é uma historia de amor, onde “Mylo” e “Xyloto” podem ser os nomes do casal protagonista, que se apaixonam tentando escapar do ambiente opressivo e distópico em que vivem (ao julgar pelo som e composição do álbum, com instrumentos pesados e tecnológicos, provavelmente uma sociedade futurística). Os acontecimentos em si ficam abertos a interpretações, ja que as musicas seguem apenas as causas e consequências dessa fuga: a sensação de estar perdido, de querer liberdade, de amor novo e proibido, que no final vencerá todos os obstáculos.
9) “Jagged Little Pill” – Alanis Morissette (1995) Com certeza o mais famoso e renomado da cantora, esse é mais abstrato já que não conta historias ou sequer acontecimentos de uma forma linear em suas letras. O truque é outro, e funciona assim: se alguém resolvesse narrar a trajetória de um infeliz indivíduo que está começando a experimentar a a vida adulta e a realidade surpreendente, bagunçada, injusta e dolorosa que a cerca, cada musica provavelmente se encaixaria em um ponto dessa historia, como se todas as letras das canções fossem parte de um diário onde essa pessoa escreve suas constantes dificuldades e reflexões, de um modo direto, não-censurado e cruelmente honesto. As emoções variam desde a felicidade e ingenuidade, gerando uma sensação de liberdade e altas expectativas, até a traição e a depressão – criando um retrato altamente identificável da vida, comprimido em uma “pequena e denteada pílula”. Provavelmente essa será a técnica usada quando o musical inspirado no álbum chegar aos palcos da Broadway, como a própria cantora já confirmou, e talvez teremos a chance de ver toda a essência do CD ser retratada no desenrolar de uma verdadeira historia.
8) “The Black Parade” – My Chemical Romance (2006) Aqui, percebe-se claramente e sem muito esforço o modo como todas as canções se unem violentamente já que tudo é retratado mais abertamente, e nem mesmo o som ensurdecedor do rock consegue abafar as inteligentes e até emocionantes letras que compõem o álbum, uma espécie de ópera rock genialmente escrita. As faixas acompanham os últimos momentos de vida de um paciente com câncer, que na maca do hospital presencia a morte vir buscá-lo em forma de um grande e majestoso desfile (black parade). O Paciente então passa por uma experiência de “pós-vida”, onde as canções retratam os acontecimentos, memórias e reflexões boas e ruins feitas por ele sobre a vida que deixava para trás – incluindo traumas, paixões, arrependimentos e saudades. O álbum teve um impacto enorme para a banda, que encarnava a homônima “black parade” durante as performances ao vivo, proporcionando um show de ar verdadeiro, teatral e reflexivo, ainda que sombrio. Muitos críticos também notam a espécie de “intertextualidade” desse álbum com o trabalho de outros artistas famosos, como Pink Floyd, Freddie Mercury, David Bowie e os Beatles. É o tipo de álbum que daria uma estrondosa adaptação cinematográfica. Curiosidade: o videoclipe da musica “Welcome to the Black Parade” resume a historia do álbum completo.
7) “Back to Basics” – Christina Aguilera (2006) É dificil resumir toda a engenhosidade que Christina usou na criação desse álbum, que foi um marco na carreira talvez até difícil demais de ser superado. Cansada da situação da indústria musical atualmente, cheia de tecnologia e artistas fabricados, a cantora resolveu trabalhar com inúmeros produtores conhecidos para construir essa obra prima em cima de musica que realmente tem alma: o jazz, o blues e o soul, trazendo um toque moderno que deu mais do que certo, colocando o pop, o R&B e até o hip hop no jogo. Ouvir ao Back to Basics completo é uma experiência única: uma verdadeira viagem ao universo das musicas que imortalizaram vários artistas (Billie Holliday, Etta James, Aretha Franklin, Stevie Wonder, Ella Fitzgerald…) e inspiraram vários outros, talvez o estilo de musica mais audivelmente bonito e inspirador que existe até hoje, tudo guiado pelo estrondoso e incomparável vozerão de Aguilera. Para gravar o disco de 21 faixas, a cantora usou técnicas para deixar o trabalho ainda mais real, como o emprego em massa de trompas, pianos e gravações ao vivo em microfones antigos. O álbum ganha mais e mais vida a medida que as canções vão passando, conversando umas com as outras, a maioria das letras inspiradas pelo casamento e relações familiares e profissionais da cantora, tudo isso contribuindo para dar ao CD uma estrutura única, como se tivesse corpo e mente.
6) “Supermodel” – Foster the People (2014) O mais recente da lista, dando espaço a um estilo musical cada vez mais comum: o indie rock. Esse álbum, tanto no arranjo instrumental quanto ao conteúdo das letras e temas retratados, derivou bastante da estreia da banda com o estrondoso e eletrônico Torches. Já pelo título é possível deduzir a ideia do álbum: uma crítica ao consumismo exagerado, negatividade, depressão e falsidade gerado pelo capitalismo e pela cultura popular moderna. Foi descrito pelo vocalista da banda como “uma conversa com Deus”, o que é uma descrição bastante apropriada já que todas as canções são como vozes de personagens gritando por ajuda ao questionar e criticar atitudes do mundo capitalista globalizado: “eu sou mesmo o que quero ser?” “Quem são meus verdadeiros amigos?” “Porque realmente estou fazendo isso?” “Quantas curtidas ou retweets ganhei com essa postagem?” “Quantos seguidores tenho, e porque isso importa tanto?” “Como devo sair de casa hoje?”. O álbum consegue realizar o incomum truque de misturar letras raivosas, violentas e sombrias com um som animado e extremamente diversificado ritmicamente, o que o torna ainda mais interessante. É mais reflexivo, natural e íntimo do que seu predecessor, o que, pelo menos para mim, é uma mudança positiva hehuehuehe.
5) “Animals” – Pink Floyd (1977) Chegamos a um ponto delicado da lista, pois quando estamos falando de álbuns conceituais, não tem pra ninguém: Pink Floyd é quem reina. Inspirado em um livro que já comentei e analisei aqui, que é A Revolução dos Bichos (Animal Farm) do George Orwell, esse álbum em particular pode ser MUITO difícil de se escutar: apesar de ter 40 minutos de duração total, ele só tem 5 faixas. Daí você adivinha: musicas se estendendo de 10 a 20 minutos, o que é algo arriscado e ao mesmo tempo envolvente de se fazer. O mais peculiar aqui são as letras das musicas: elas comparam a sociedade a animais, com uma diferença essencial da fábula de Orwell: lá, tínhamos uma crítica ao Stalinismo, enquanto o Pink Floyd titica o lado ruim do capitalismo e a degradação das classes sociais que ele afeta, notavelmente na Inglaterra dos anos 70. A ideia gira em torno de três animais: os implacáveis porcos (governantes), os combativos cachorros (classe trabalhadora) e o estúpido rebanho de ovelhas (proletariado), só que dessa vez a banda apóia o desfecho em que as ovelhas vencem os porcos.
4) “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” – David Bowie (1972) Apenas mais um exemplo de toda a criatividade e originalidade do Bowie compactadas em um álbum, que conta a história de um alienígena bissexual chamado Ziggy Stardust, apenas um dos vários alter-egos criados pelo cantor, que vem para salvar a Terra que seria destruída em cinco anos devido a escassez de recursos naturais e acaba formando uma banda chamada “The Spiders from Mars”. Ele se torna uma estrela e acaba cedendo aos exageros do Rock n’ Roll, culminando com seu suicídio. Na época de seu lançamento, o álbum gerou muita polêmica e chegou a ser censurado devido aos rumores em torno da sexualidade do próprio Bowie e aos temas explícitos de exploração sexual e crítica social retratados pelo personagem, que representava o típico rockstar: promíscuo, drogado, mas com uma mensagem forte de esperança e amor para transmitir aos fãs que inspira, e o som do álbum reflete perfeitamente esse clima. Hoje é lembrado e preservado como um dos melhores e mais influentes álbuns da história, assim como tudo que o Bowie faz… Curiosidade:inicialmente, a ideia de Bowie seria que o álbum servisse de trilha sonora para algum filme/série de TV contando a historia do personagem, e várias musicas criadas para esse álbum foram descartadas e reapareceram só depois no catálogo de Bowie em outros de seus álbuns.
3) “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” – The Beatles (1967) Sem dúvida um dos maiores clássicos de toda a história da música, já muitas vezes apontado como “o melhor álbum de todos os tempos” (tal coisa não existe, mas ok) e como a obra-prima dos Beatles. Foi esse disco que abriu o caminho para os álbuns conceituais e redefiniu o som da banda, e hoje tantos mitos se formaram em torno dele que cada um pode ter uma interpretação diferente. Sabe-se que Paul MacCartney deu a ideia de criar quatro personagens, um para cada membro da banda, como novos “alter-egos” que formariam uma banda fictícia, e os Beatles encarnariam tal banda para criar o CD. Isso era um meio criativo que permitiria que eles experimentassem técnicas, instrumentos e composições novas do que estavam acostumados a tocar e ouvir na época. A ideia deu certo: surgiu a “Banda dos Corações Solitários do Sargento Pimenta”, integrada pelos personagens exagerados e coloridos dos Beatles, os quais eles interpretavam em quase todas as suas aparições públicas dessea época. O conceito original do álbum seria transportar-nos para um show exclusivo dessa banda fictícia que parecia tão diferente dos Beatles, como introduzido na faixa-título. Porém, a ideia aparentemente foi abandonada depois de algumas faixas pois a maioria das musicas criadas se mostrava ineficiente de seguir um raciocínio único, mas o uso desse quadro geral, a impecável sonoridade, coesiva estrutura e cuidadosa organização das faixas, junto às infalíveis composições Lennon-McCartney, fizeram com que o álbum fosse aclamado como um divisor de águas da criação de álbuns conceituais, mesmo com sua diversidade temática. Curiosidade: a famosíssima e genialmente elaborada capa do álbum retrata os quatro integrantes da banda fictícia (Os Beatles vestidos de sargentos) cercados por celebridades que representariam uma plateia para o show, e cada rosto ali tem um significado. Para evitar polêmicas, os artistas teriam que dar permissão para que sua foto fosse usada, e muitos rostos inicialmente planejados a integrar a plateia não estão na versão final, como Jesus Cristo, Ghandi e Hitler.
2) “American Idiot” – Green Day (2005) É quase sendo comum o fato de que até hoje o Green Day não conseguiu superar seu o maior sucesso. Aqui temos mais um exemplo de ópera rock, violentamente escrita para nao só alfinetar, mas colocar no fogo inúmeros valores e costumes da sociedade americana, particularmente durante governo do presidente George Bush, justificando as controvérsias e censuras geradas em torno da banda nessa era. A banda ja firmou que criar esse álbum foi uma típica atitude americana: comentar e protestar. A historia por trás das faixas, que já foi adaptada para os palcos da Broadway com a supervisão da banda e obtendo muito sucesso, segue a trajetória do anti-herói central, chamado Jesus of Suburbia. Movido pelo ódio que nutre da cidadezinha corrompida em que vive e da sociedade que lá habita, ele abandona a periferia em direção a cidade grande. A partir daí, outros personagens são introduzidos, como St. Jimmy, um rebelde lutador da liberdade e a misteriosa e quase anônima Whatsername, uma figura de “mãe da revolução” e uma potencial arqui-inimiga de St. Jimmy que logo encanta Jesus, evidenciando o contraste principal do álbum: ódio VS amor. Os acontecimentos se desenrolam a partir daí, levando o protagonista a ter que esconder qual caminho quer seguir: o da raiva cega e da auto-destruição, ou o do amor, da caridade e da esperança. Escutando o álbum completo, percebe-se que o personagem St. Jimmy, ao cometer suicídio metaforicamente, se revela como apenas uma parte do próprio Jesus of Suburbia, alegando que ele finalmente conseguiu se desfazer dessa parte de sua vida. Logo depois, ele perde contato com a garota, ao ponto de não conseguir “nem mais se lembrar do seu nome”. Passando mensagens poderosas, o objetivo do álbum é que o ouvinte abra sua mente e enxergue as entrelinhas, já que tudo ali mostrado é na verdade um retrato da situação americana contemporânea, das regras injustamente impostas e dos conflitos desastrosos gerados por decisões erroneamente tomadas, tudo contribuindo para uma alienação do povo. Esse disco também gerou alguns dos mais imortais hits do Green Day, como a propria American Idiot, Boulevard of Broken Dreams e (minha preferida) Wake Me Up When September Ends, apesar de ser um trabalho que vale muito mais a pena se escutado em conjunto e do começo ao fim. Curiosidade: a icônica capa do álbum foi criada a partir do trecho “And she’s holding on my heart like a hand grenade”, da faixa She’s a Rebel.
1) “The Wall” – Pink Floyd (1979) E não tem jeito, voltamos ao Pink Floyd para fechar com chave de ouro. Não me matem por não ter colocado o Dark Side of the Moon na lista!!! Mas o primeiro lugar sempre foi (e sempre será) do The Wall, pois considero um exemplo mais do que perfeito para álbuns conceituais. O Pink Floyd não tem uma obra-prima por unanimidade: fica entre os quatro álbuns conceituais que desenvolveu, todos de importância e influência enormes para a historia da música. O exemplo mais polêmico de todos, o The Wall é uma verdadeira genialidade musical e criativa: a ideia surgiu durante a primeira grande turnê em estádios da banda, quando o baixista Roger Waters passou a se frustar tanto com o perceptível “tédio” ou falta de educação e respeito da platéia (ele chegou a cuspir na cara de um garoto) que ele constantemente se imaginava construindo uma parede entre a banda e o público. A ideia do álbum seria analisar essa separação psicológica pela qual os membros da banda estavam passando. O disco, outra ópera rock, conta a trágica historia do anti-herói Pink: sofrendo com a perda de seu pai na Segunda Guerra Mundial e sufocado pelos cuidados da mãe super-protetora e por uma vida escolar cheia de professores tiranos e até abusivos e de constantes sarros dos outros estudantes, ele lentamente constrói uma “parede” metafórica isolando-o do resto do mundo, na qual cada trauma e tormento de sua vida se torna um tijolo. Eventualmente, Pink se transforma numa estrela do rock e passa a ter a vida controlada por drogas, violência e infidelidade. Seu casamento desmorona e ele então se perde definitivamente na parede que construiu, sem contato algum com o mundo real. Passa a experimentar a loucura e as alucinações ao ponto de degradar seu próprio corpo e passar a se imaginar como um ditador nazista se apresentando em shows, maltratando e atormentando os fãs, até que a culpa o consome e ele se coloca diante de um júri, onde recebe o decreto de “derrubar a parede”. A ultima musica do álbum se intercala com a primeira, dando uma sensação de “ciclo completo” e de que a historia pode estar prestes a se repetir para sempre. O álbum se tornou um estrondoso sucesso para a banda, que também passou a dar uma atmosfera mais teatral aos shows na tentativa de transmitir as mensagens que desejavam, e que hoje é definido como uma das marcas registradas do Pink Floyd. Foi feito também um curioso filme com base no álbum que conta com pouco diálogo e tem como efeitos sonoros e narrativos da história as musicas do disco, misturando seqüências de animação e de atores reais. The Wall é extremamente metafórico e teatral, e chega a ser feio, agoniante, perturbador e doloroso de se escutar por fazer o ouvinte refletir sobre temas como a solidão, abandono, alienação e os limites entre sanidade e loucura. Mas, afinal, essa é a alma da obra: um clássico imortal para o mundo do rock que consegue causar impacto até demais, inspirando inúmeras gerações futuras e deixando para sempre o seu legado.
Outros álbuns que não entraram para a lista por motivos de não escuto muito/nunca escutei/quis colocar outros mais diferentes mas são ótimos exemplos: “Tommy” do The Who, “Pet Sounds” dos The Beach Boys, “Tumbleweed Connection” do Elton John, “The Suburbs” do Arcade Fire, “Diamond Dogs” do David Bowie, “21st Century Breakdown” do Green Day, “Electra Heart” do Marina and the Diamonds e “The Dark Side of the Moon” e “Wish You Were Here” do Pink Floyd.
Fonte: Blog Narrador Personagem. Acesso em 21/01/16
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