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30 de outubro de 2011

Mar Portuguez - Fernando Pessoa



Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão resaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa nasceu em 1888, em Lisboa, vindo a falecer na mesma cidade, em 1935, com apenas 47 anos. Órfão de pai ainda criança, passou a infância e a adolescência em Durban, na África do Sul, onde obteve educação inglesa, tornando-se um poeta bilíngue. Em 1905, prestes a ingressar na Universidade do Cabo, precisou voltar para Lisboa. Lá chegou a iniciar o Curso Superior de Letras, abandonando-o para instalar uma tipografia, que fracassou. Trabalhou obscuramente como correspondente estrangeiro – redator de cartas comerciais em inglês e francês –, atividade modesta, que acabou por sustentá-lo a maior parte da vida.

Embora tenha participado intensamente das publicações do Modernismo português, seu único livro publicado em vida foi Mensagem, obra com a qual participou de um concurso de poesia do Secretariado da Propaganda Nacional, em Lisboa, em 1934, pouco antes de morrer. O prêmio de segunda categoria que lhe deram, nessa última experiência literária, mostra o quanto não foi reconhecido em vida, embora tenha dedicado toda ela à arte e à poesia. Milhares de páginas têm sido escritas sobre sua criação, uma das maiores do século XX, ao lado de Eliot, Rilke, Pound, Lorca e alguns outros.

Além de Mensagem, escreveu Poemas completos de Alberto Caeiro, Odes de Ricardo Reis, Poesias de Álvaro de Campos, Poemas dramáticos, Poesias coligidas, Quadras ao gosto popular, Novas poesias inéditas. Em prosa, suas obras são: Páginas de Doutrina Estética, A nova poesia portuguesa, Análise da vida mental portuguesa, Apologia do paganismo e Páginas íntimas e de auto-interpretação.

Poeta filósofo, sutil e complexo, Fernando Pessoa escreve em redondilhas rimadas, fundamentalmente procurando reunir o “sentir” e o “pensar” (“ O que em mim sente ´stá pensando”). A inquietação, a necessidade de compreender todas as coisas, a busca constante da consciência, que inclui saber ser ela uma impossibilidade, constituem algumas das características fundamentais de sua obra.

Fernando Pessoa é o poeta que conjuga lucidez e vidência, que se coloca entre o pendor para a paixão, o sonho, a entrega mágico-poética aos mistérios e a postura analítico-racional, de constante indagação crítica. Assim, fragmentou-se, multiplicou-se, reinventou-se, convivendo em profundidade com todas as grandes contradições do nosso tempo e recriando-as poeticamente, numa das monumentais obras-primas da poesia do século XX.

Mensagem é sua obra em versos, ao mesmo tempo, líricos e épicos. Está dividida em três partes: I – Brasão; II – Mar Portuguez; III – O Encoberto. Nela, Pessoa recria a História de Portugal, a partir de Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões. Escrita no período neoclássico (século XVI), Os Lusíadas é considerada a maior epopeia existente em língua portuguesa, tendo imortalizado a glória e a soberania de Portugal, no período da expansão ultramarina.



No diálogo intertextual que Fernando Pessoa estabelece com Os Lusíadas para escrever Mensagem, percebe-se que o objetivo maior desta obra é restabelecer a grandeza messiânica da pátria, conquistada na época de Camões por meio das Grandes navegações Marítimas, e nunca mais recuperada. Em sua atmosfera mitopoética, visionária, Mensagem busca resgatar a glória e a soberania portuguesas, vendo a pátria predestinada a realizar um destino superior, tão nobre quanto o realizado no século XVI, mas de natureza metafísica, espiritual: a criação da Grande Poesia.

“Mar portuguez” é uma das mais belas composições de toda a obra de Fernando Pessoa. Nela, o poeta sintetiza, de forma brilhante, os elementos fundamentais no questionamento das Navegações: a dor, o preço pago para que o mar se tornasse português e a pergunta vital – “Valeu a pena?”.

O poema tem um tom filosófico, épico, elegendo como interlocutor o mar: espaço infinito, de expansão e de aventuras. Faz um balanço histórico com ele, reconhecendo a dor e, também, a necessidade de ultrapassá-la, quando o que importa é o Ideal. Em versos alternadamente de dez e oito sílabas poéticas, com rimas emparelhadas (aabbcc), as duas estrofes de seis versos que constituem o poema exibem alguns elementos essenciais da releitura de Os Lusíadas presente em Mensagem. Sua temática se aproxima da do episódio camoniano do Velho do Restelo, em que se denuncia o imenso sacrifício imposto ao povo pela aventura ultramarina:

“ Em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam.
As mulheres e`um choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
Mãe, esposas, irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.”

Julgando-os perdidos, mães, esposas, irmãs choravam antecipadamente a morte de seus parentes; as lágrimas eram tantas que se igualavam em quantidade aos grãos de areia:

“ A branca areia as lágrimas banhavam,
Que a multidão com elas se igualavam.”



Fernando Pessoa retoma a fusão das lágrimas com as águas do mar, comunhão mais que perfeita da aventura portuguesa. Como nos outros poemas desta obra, o autor recorre a arcaísmos gráficos, como forma de remissão a um passado longínquo (portuguez, lagrimas, resaram, quere, abysmo, nelle).

Na primeira estrofe do poema, o mar aparece como vocativo, considerado como entidade superior, divina, mitificada (dessas entidades superiores que se alimentam de sangue, da dor, do sacrifício humano). As frases exclamativas realçam o sofrimento causado pela sua conquista, sintetizado pelas lágrimas que, de tão numerosas, colaboraram para torná-lo salgado (conceito hiperbólico). Repare que o eu lírico se manifesta de forma coletiva: “ Por te cruzarmos, quantas mães choraram”. A forma verbal de primeira pessoa do plural (“cruzarmos”) traz implícito o sujeito nós, que expressa a ideia de uma voz coletiva, isto é, de todo o Povo português a lamentar o alto preço pago.

A vocação náutica dos portugueses e os grandes descobrimentos do passado tornaram o tema do mar bastante frequente na Literatura Portuguesa de todos os tempos. Fernando Pessoa, em “Mar portuguez”, focaliza o custo que a aventura marítima representou em termos de vidas humanas e sofrimentos ao povo de seu país (representado pelo choro das mães, a prece dos filhos e a privação das noivas). O possessivo nosso do verso 6 não deixa dúvida de que Portugal adquiriu efetivamente a conquista desejada: o mar.

A segunda estrofe, no entanto, o eu lírico justifica o empreendimento e o esforço supremo: “Quem quere (quer) passar além do Bojador/Tem que passar além da dor”. Para os portugueses, a glória era simbolizada pela superação dos perigos do mar, constante duelo com a morte. O Bojador é um cabo localizado na costa oeste da África, na altura das ilhas Canárias (pouco ao norte do Trópico de Câncer). No início das grandes Navegações, era o limite conhecido do território africano. Portanto, “passar além do Bojador” significa entrar no desconhecido, enfrentar “perigos e abismos”.

E nesse contexto, “ tudo vale a pena” quando se alcança um desígnio maior, destinado pela nobreza da alma não pequena( de inspirações ilimitadas), pois se o mar é perigoso, na mesma medida, é o espelho da grandeza e da sublimidade, já que é nele que se reflete o céu. Ao Ideal expansionista do século XVI, com suas conquistas materiais e suas glórias terrenas, Pessoa opõe outro Ideal: um “Mar portuguez” mítico, metafísico, espiritual: conquistá-lo significa optar pela aventura e pelo sonho, engrandecer a pátria e a humanidade com a força da “Grande Poesia”, portuguesa e ao mesmo tempo universal

Fonte: Blog Literatura & Linguagens

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